Este artigo investiga a possibilidade de uma teologia bíblica da amizade a partir de textos centrais do Antigo e do Novo Testamento. O percurso inicia com Abraão, designado "amigo de Deus" (Is 41,8; 2Cr 20,7), modelo de parresia e...
moreEste artigo investiga a possibilidade de uma teologia bíblica da amizade a partir de textos centrais do Antigo e do Novo Testamento. O percurso inicia com Abraão, designado "amigo de Deus" (Is 41,8; 2Cr 20,7), modelo de parresia e intimidade, que serve de referência para Israel no exílio. Em seguida, João 15 redefine a relação entre Jesus e os discípulos, deslocando-os da condição de servos para a de amigos, em torno do mandamento do amor e da metáfora da videira. Em Atos, a amizade assume caráter comunitário ("um só coração e uma só alma"-At 4,32) e ontológico ("Por que me persegues?"-At 9,4-5). Finalmente, Romanos 5,1-11 apresenta a reconciliação como transformação de inimigos em amigos de Deus. Conclui-se que a amizade, na Bíblia, constitui categoria teológica fundamental, articulando revelação, comunhão e reconciliação. Palavras-chave: Amizade. Abraão. João 15. Atos dos Apóstolos. Romanos 5. Introdução A amizade é um tema universal, explorado por tradições filosóficas e religiosas. Na filosofia grega, especialmente em Aristóteles, a amizade (φιλία) ocupa lugar de honra como vínculo social e ético. No entanto, no horizonte bíblico, a amizade adquire contornos teológicos específicos, descrevendo não apenas relações humanas, mas também a relação entre Deus e seu povo. O objetivo deste artigo é demonstrar que existe, nas Escrituras, uma teologia da amizade que percorre toda a revelação, do Antigo ao Novo Testamento. A investigação seguirá cinco blocos: (1) Abraão como amigo de Deus, paradigma veterotestamentário; (2) Isaías 41 como atualização desse título para Israel; (3) João 15 como locus cristológico da amizade; (4) Atos 4,32 e 9,4-5 como expressão comunitária e identificação com Cristo; e (5) Romanos 5,1-11 como dimensão soteriológica da reconciliação. 1. Abraão, o amigo de Deus O Antigo Testamento reconhece Abraão como "meu amigo" (Is 41,8; cf. 2Cr 20,7; Tg 2,23). Essa designação remete à cena de Gn 18,17, quando Deus afirma: "Ocultarei de Abraão o que estou para fazer?". Para Watts (1985), Abraão aparece em momentos-chave de Isaías (41,8; 51,2; 63,16) como referência de identidade para Israel no exílio. Smith (2009) interpreta os quatro títulos atribuídos a Israel em Is 41,8 ("meu servo", "meu escolhido", "semente de Abraão" e "meu amigo") como um crescendo de privilégios. Oswalt (2003) destaca que o termo hebraico pode significar também "amado", revelando a dimensão afetiva e pessoal da relação. Motyer (1999) ressalta que a evocação da "semente de Abraão, meu amigo" conecta Israel à aliança patriarcal e fundamenta sua esperança. Assim, Abraão é paradigma da amizade com Deus: interlocutor de confiança, a quem Deus revela seus planos, e cujo nome serve de fundamento para a identidade do povo eleito em tempos de crise. 2. A amizade em João 15: amor supremo, revelação e permanência O discurso da videira verdadeira (Jo 15,1-17) constitui a formulação mais densa da amizade no Novo Testamento. (1) O amor supremo. Jesus declara: "Ninguém tem maior amor do que este: dar a vida pelos amigos" (Jo 15,13). Para Carson (1991), a amizade aqui se define pelo sacrifício radical consumado na cruz. Michaels (2010) observa que esse amor é moldado no amor do Pai pelo Filho (Jo 15,9). (2) A revelação. Jesus acrescenta: "Já não vos chamo servos [...] mas amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer" (Jo 15,15). Thompson (2015) interpreta essa abertura como confiança plena, em que os discípulos partilham os segredos divinos. Klink (2016) reforça que Jesus estabelece a amizade como comunicação de revelação. (3) A obediência. "Vós sois meus amigos, se fizerdes o que vos mando" (Jo 15,14). Morris (1995) enfatiza que não se trata de obediência servil, mas de resposta amorosa ao mandamento do amor mútuo. Burge (1996) destaca que esse amor deve seguir o padrão: "assim como eu vos amei". (4) Permanecer na videira. A metáfora central (Jo 15,1-8) fundamenta a amizade como união vital. Schnackenburg (1968) interpreta o permanecer como continuidade na palavra (Jo 15,7) e no amor (Jo 15,9-10). Thompson (2015) complementa que a amizade com Cristo não é estática, mas participação dinâmica na vida da videira. Portanto, em João 15, a amizade é sacrificial, revelacional, obediencial e vital, moldada no amor intra-trinitário e concretizada na permanência no Filho.