Mesmo decorridos vinte anos após seus partos, mulheres conseguiram relatar, com detalhes, quem estava na sala, as intervenções, episódios anedóticos, como ocorreu... São marcas que farão parte de sua bagagem vivencial, intelectual,...
moreMesmo decorridos vinte anos após seus partos, mulheres conseguiram relatar, com detalhes, quem estava na sala, as intervenções, episódios anedóticos, como ocorreu... São marcas que farão parte de sua bagagem vivencial, intelectual, espiritual e mesmo sexual, cicatrizes na
alma e no corpo – a depender de como esse fenômeno transcendente terá sido vivenciado. Como comenta o senso comum, tornar-se mãe não tem volta. E o marco inicial da jornada da maternidade é o nascimento da criança.
Em cada nascimento há uma dimensão individual, singular. Como dizem os obstetras, cada parto é um parto, cada nascimento, um nascimento. Contudo, para além da dimensão individual e familiar, há a dimensão social, coletiva. Ademais, identificando a complexidade do processo, há a
forma como a sociedade representa esse processo tão individual. Apenas como exemplo, no Brasil,
caso aceitemos que a estatística determina a normalidade, se considerarmos que em 2012 tivemos
55,6% (mais da metade, portanto) dos nascimentos por cirurgia cesariana, vale o que disse um
obstetra num dos depoimentos: “Parto normal, para mim, é cesárea!”.
Os organismos internacionais já reconhecem que nosso país é o detentor das mais altas taxas de cesárea no cenário mundial – feito que não nos enaltece, pois tem impacto na saúde das
mulheres e principalmente dos recém-nascidos, a exemplo da prematuridade associada com o
agendamento da cirurgia antes do início do trabalho de parto. As razões históricas para termos
chegado a esse ponto são diversas: a forma de organização do sistema de saúde, com pagamento
por procedimentos; a associação da cirurgia com a laqueadura tubária, que por muito tempo não
era legalizada; o não pagamento de analgesia de parto nos partos vaginais, no sistema público de
saúde; a construção social da cesárea como uma forma glamourosa de ter filho, como procedimento para uma classe mais favorecida, construção essa fortemente influenciada pelos meios de comunicação de massa; e a conveniência dos profissionais e dos estabelecimentos de saúde, uma vez que,
diferentemente do parto vaginal, a cesárea é programável.
Em nossa sociedade, as mulheres vêm sendo cada vez mais alijadas desse processo tão natural. Houve uma época, na cultura obstétrica (principalmente norte-americana, mas exportada para
seus países periféricos), em que humanização do parto era sinônimo de parto sem dor. Então, as
mulheres eram anestesiadas, adormecidas, e seus bebês eram extraídos por fórceps. Naturalmente,
com uma gigantesca episiotomia, aquele corte que amplia o períneo para permitir a passagem do
bebê. Contudo, continuavam dormindo e não acompanhavam a primeira hora de vida de seus filhos e, assim, perdiam a oportunidade de estabelecer o vínculo nesse período, que hoje é reconhecido como muito importante e excepcional para balizar a relação mãe-filho. Felizmente, essa forma
de atendimento foi passageira, um modismo que não durou – mas, em seu lugar, dada a relativa
segurança que o procedimento cirúrgico foi adquirindo, este acabou se generalizando.
A grande maioria das pesquisas com as mulheres mostra a preferência pelo parto normal.
No entanto, as estatísticas revelam que a maioria dos nascimentos em nosso país acaba em procedimentos cirúrgicos. Então, faz-se necessário investigar esse processo cultural que se transformou em
problema social, muito bem identificado pela Luciana Carvalho, a cultura cesarista – que vige entre profissionais de saúde, mas que foi também apropriada pela sociedade.
A Linguística tem muito a contribuir para o entendimento deste cenário. Por exemplo, por
meio de metáforas. Se a cesárea se tornou um bem de consumo, mais acessível a mulheres de
maior renda e escolaridade, objeto de desejo da afluente nova classe média, há instituições e profissionais que colocaram o modo atual de nascimento numa linha de produção industrial. É possível otimizar o tempo do profissional e do centro cirúrgico agendando até seis cesarianas para um
período: chega a primeira, corta, tira o bebê, costura, vem a segunda, corta, tira o bebê, costura,
vem a terceira....
Mas é outra a ferramenta que Luciana aporta para entendimento desse candente problema
social. Ela busca compreender, decodificar, o que faz mulheres que se submeteram a um procediEu Não quero
14
mento cirúrgico num nascimento anterior buscarem a vivência empoderadora do parto vaginal e
humanizado. O material deste livro foi composto por representações dos sujeitos envolvidos, no
caso, mulheres, a respeito de suas vivências relatadas na internet, portanto públicas. Trabalhou-se
apenas com relatos de partos vaginais após cesarianas, e as mulheres contaram como experienciaram
e como representam o nascimento de seus filhos e filhas pelas duas vias. Luciana adotou a Linguística de Corpus para falar do corpo e da alma das mulheres, analisando o discurso das mulheres que
tiveram seu desejo inicial de parir abortado por uma cesárea, na maioria das vezes mal indicada, antecipada. E o que representou para elas a busca do conhecimento, da informação, e a construção,
cuidadosa e nem sempre sem conflitos, de uma outra história para acrescer à de suas vidas.
A análise dos relatos trata da construção de um processo de recuperação do parto, pelas e
para as mulheres. Luciana assinala o papel do discurso na instauração, manutenção e superação
dos problemas sociais e, por meio da Análise Crítica do Discurso, revela relações de poder construídas por meio da linguagem. Na linguagem é possível identificar marcas ideológicas que desestabilizam ou reforçam o poder – o discurso hegemônico. Numa relação entre o profissional médico e a gestante, e depois parturiente, há dominância social e política. No hospital, há o controle
do corpo. As desigualdades são reforçadas e reproduzidas por meio do discurso e das práticas. E o
poder hegemônico é legitimado pela mídia e pelo convívio social – a naturalização coroa a ideologia dominante.
Na análise do discurso, muitas vezes se evidencia a falta de correspondência entre o desejado
e o alcançado. A dissonância entre a expectativa e o resultado. E, por meio da desconstrução analítica, é construído um novo corpo de conhecimento, que faz uma crítica profunda e contundente à
prática social. Se as relações de poder se expressam pela linguagem, este livro instrumentaliza quem
o lê para a compreensão desses processos – e compreender é um primeiro passo para a mudança de
atitude, que gerará a mudança da prática.
Foram muitos os relatos de parto lidos. Brasileiros, norte-americanos, ingleses, australianos.
Sempre relatos de parto vaginal após cesárea (PVAC ou VBAC, na sigla em inglês: Vaginal Birth
After Cesarean). Neles se percebe que as mulheres estão estudando cada vez mais a respeito de partos e nascimentos. Frequentemente as referências que citam são mais atualizadas que as de catedráticos das universidades. São mulheres empoderadas pelo conhecimento científico que se veem rebatendo os discursos que refletem a ideologia intervencionista – e, enfrentando o establishment
(família, vizinhos, parentes, colegas de trabalho, além da cultura institucional), conseguem heroicamente concretizar o sonho de ver nascer seu filho ou sua filha saindo de dentro de si. A palavra
mágica é ‘estar no controle’.
Neste livro, originado de sua tese de doutoramento, Luciana Carvalho busca oferecer à sociedade meios para se transformar, e, às mulheres, um instrumento para seu empoderamento. A
partir desses relatos de parto, desconstruindo e reconstruindo os significantes e os significados, de
maneira fluida e acessível, estrutura um texto para que suas leitoras possam se apropriar dessa linguagem, decodificar-se, fortalecer-se e empoderar-se. Nos indica que o processo de recuperação do
parto, em nossa cultura, passará também pela linguagem.
Se em 2012 alcançamos a triste proporção de 55,6% de cesáreas no país – e tudo indica que
nos mantemos em contínua ascensão – este livro se mostra extraordinariamente oportuno. Cada
outra Cesárea
15
vez mais mulheres desejam vivenciar sua potencialidade de parir suas crias e buscam – até com
manifestações e marchas em muitas cidades – defender seu direito de gestar e parir com dignidade,
respeitando seu processo natural, seu tempo, seus desejos e expectativas. Com esse riquíssimo material, e com suas reflexões sempre bem fundamentadas e oportunas, Luciana nos tira da zona de
conforto e aciona nossa indignação: é preciso mudar, e a mudança passa pela linguagem.
Parafraseando a citação inicial desta apresentação, recomendo a toda mulher que realmente
tiver vontade de parir que leia este livro. Ele a ajudará a desconstruir discursos da mídia e de profissionais, a aproximará da tradição de relatos orais de transmissão de conhecimento e a fortalecerá na
busca de argumentos que legitimem sua potência e competência. Assim, poderá fazer escolhas bem
informadas e se tornar sujeito, protagonista responsável por essas escolhas. E, ao vivenciar o parto
como ele pode e deve ser, fortalecedor, poderá comentar como a narradora do relato que inicia este
texto: “é uma revolução que vale muito a pena!” .
Daphne Rattner
Médica epidemiologista, professora da Universidade de Brasília e
presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento – ReHuNa
ISBN: 978-85-67695-03-7