Todos os anos, saem aos jornais as mais trágicas notícias de fluxos migratórios de refugiados, os quais, ainda que temporariamente, tornam-se objeto de comoção internacional. Duas imagens, neste ano, capturaram a essência do mais íntimo...
moreTodos os anos, saem aos jornais as mais trágicas notícias de fluxos migratórios de refugiados, os quais, ainda que temporariamente, tornam-se objeto de comoção internacional. Duas imagens, neste ano, capturaram a essência do mais íntimo desespero daqueles que não encontram outra solução senão fugir de seus países: as centenas de marroquinos que chegaram à costa espanhola, bem como os afegãos que se penduraram em aviões para fugir do Talibã. Foto: Bernat Armangué. Estes acontecimentos indicam que, por todo o globo, a questão dos refugiados tem sido encarada de maneira equivocada. Aos olhares mais atentos, visualiza-se que as migrações forçadas, por sua própria característica de fuga de um país para outro, ultrapassam as fronteiras nacionais, de modo que o seu manejo não pode ser reduzido meramente a políticas internas restricionistas, mas, ao contrário, exige um esforço conjunto da sociedade internacional para a efetivação de um acolhimento humanitário. 9/1/25, 6:35 AM A Proteção Internacional dos Refugiados antes de 1951: o contexto da Liga das Nações e a OIR -internacional-dos-refugiados-antes-de-1951-o-contexto-da-liga-das-nações-e-a-oir 1/6 É de se refletir, portanto, acerca da proteção, a nível internacional, dos refugiados e seus direitos. E, neste particular, quase que naturalmente a figura da Organização das Nações Unidas (ONU) vem à baila. Afinal, é exatamente ela que, hoje, centraliza os esforços internacionais -mais conhecidos -de proteção aos refugiados. De um lado, institucionalmente, há o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR); de outro, o principal instrumento normativo sobre a matéria é derivada da ONU, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, também conhecida como Convenção de Genebra de 1951. A Organização das Nações Unidas, assim, é peça chave nesta moldura político-normativa de proteção aos refugiados. No entanto, é errôneo imaginar que os esforços da sociedade internacional a este respeito tenham se dado tão somente após o advento da ONU. O objetivo do presente artigo, nesse sentido, é demonstrar que a proteção aos refugiados tem relevância na sociedade internacional desde antes da ONU. Em específico, busca-se evidenciar como a Liga das Nações, em um contexto de pós Primeira Guerra Mundial, intermediou as crescentes preocupações relativas ao expressivo aumento do número de refugiados pelo mundo. Precisamente, explicitam-se as ações do Dr. Fridtojf Nansen, a frente da primeira organização internacional de proteção aos refugiados, o Alto Comissariado para Refugiados Russos. Em tempo, pretende-se abordar a existência de outras organizações internacionais anteriores ao ACNUR, sobretudo, a Organização Internacional para Refugiados (OIR), explicitando seu mandato e realizações. A proteção dos refugiados no contexto da Liga das Nações Primeira Guerra Mundial (1914-1918) remodelou a geopolítica mundial, fazendo com que o mundo se deparasse, pela primeira vez, com a aparição de uma quantidade nunca antes presenciada de refugiados e apátridas -pessoas, portanto, que não eram bem-vindas em seus países de origem, tampouco podiam ser acolhidas por lugar algum. Eram, nas palavras de Hannah Arendt, os "refugos da terra", isto é, pessoas sem lar, cidadania ou direitos. Para além da própria Grande Guerra, que fez milhares de pessoas se refugiarem em outros países, outros dois acontecimentos concomitantes levaram a este cenário: de um lado, a Revolução Russa (1917), que ocasionou a fuga dos "Russos Brancos", partidários das forças contrarrevolucionárias; e, de outro, o Genocídio Armênio (1915Armênio ( -1923)), protagonizado pelo Império Otomano, que perseguiu e expulsou a minoria armênia de seu território. Assim, na quantificação de Stefania Barrichello e Luiz de Araujo, após a Primeira Guerra, haviam deslocados ao menos 1.500.000 russos brancos, 700.000 armênios, 500.000 búlgaros, 1.000.000 de gregos, além de milhares de alemães, húngaros, romenos e demais minorias que não foram assimiladas pelos recém nascidos países após a queda dos grandes Impérios da centro-europa. Dentre esses deslocados, relevante preocupação se deu ao caso dos russos pela sociedade internacional. Isso porque, após a Revolução Russa, o novo governo, por intermédio dos decretos de 28 de outubro e 15 de dezembro de 1921, promoveu um sistema de desnaturalização em massa por motivos políticos. De tal forma, conforme tais decretos, desnaturalizou-se (i) todos os russos que estiveram no exterior por mais de 5 anos e que, até 22 junho de 1922 não tivessem obtido um novo passaporte perante as novas autoridades; e (ii) todos aqueles que fugiram do país em decorrência do novo regime implantado. Ante a enorme quantidade de apátridas e refugiados russos que estes decretos produziram, a Liga das Nações, em conjunto com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, criou, em 1921, a primeira Organização Internacional com o objetivo específico de proteção aos refugiados: o Alto Comissariado para Refugiados Russos. Sob a liderança do norueguês Fridtojf Nansen, referida organização tinha o objetivo de regular a situação jurídica desses desnacionalizados, bem como repatriá-los ou, então, assentá-los em outro país, colaborando na busca por residência e trabalho para eles. Para atingir tais objetivos, Nansen, através de competente diplomacia, em 1922, angariou 52 países para a ratificação do Ajuste Relativo à Expedição de Certificados de Identidade para os Refugiados Russos. Em que pese este ajuste não tenha definido o que seria um refugiado, instituiu-se o Passaporte Nansen, dando aos refugiados russos o status jurídico de "pessoa de origem russa que não adquiriu outra nacionalidade". Com este documento, seus portadores poderiam transitar dos lugares onde estavam "ilegalmente" para países dentro da Liga das Nações mais hospitaleiros. Voltar ao Topo 9/1/25, 6:35 AM A Proteção Internacional dos Refugiados antes de 1951: o contexto da Liga das Nações e a OIR -internacional-dos-refugiados-antes-de-1951-o-contexto-da-liga-das-nações-e-a-oir 2/6 Foto: World Digital Library. Pelo sucesso da iniciativa de Nansen, o Alto Comissário foi premiado com o Nobel da Paz em 1923, sendo que, no ano seguinte, o número de refugiados russos já teria caído pela metade. Em 1924, o Passaporte Nansen foi ampliado aos armênios vítimas da perseguição e deportação em massa do Império Otomano, por meio do Plano Relativo à Expedição dos Certificados de Identidade para os Refugiados Armênios. Note-se que, com os esforços do Alto Comissário Nansen, nos trabalhos da Liga das Nações para a proteção aos refugiados, nessa fase inicial, o refugiado era definido por sua nacionalidade ou grupo étnico, não por uma condição individualizada do sujeito refugiado. Tanto é assim que, em 1926, celebrou-se o Arrangement relating to the issue of identity certificates to Russian and Armenian refugees, no qual não se definiu o que seria refugiado, mas o que seria um refugiado russo e um refugiado armênio. O refugiado russo seria aquela pessoa de origem russa que não gozasse mais da proteção da URSS e nem tivesse adquirido outra nacionalidade, ao passo que o refugiado armênio seria a pessoa de origem armênia, anteriormente súdita do Império Otomano, que não gozasse de proteção da Turquia e nem tivesse adquirido outra nacionalidade. Ainda em relação aos refugiados russos e armênios, foram ratificadas, em 1928, os Arrangements relating to the legal status of Russian and Armenian refugees, no qual houve pela primeira vez, ainda que de maneira incipiente, a expressa previsão do princípio da não devolução (non-refoulement), uma vez que recomenda, em seu ponto 7, que a expulsão seja evitada ou suspensa quando o refugiado russo ou armênio não reunir condições de adentrar em outro país legalmente. Observa-se, portanto, que, sob a liderança de Nansen, no contexto do entre-guerras, a sociedade internacional deu os primeiros passos em direção à proteção aos refugiados à nível global. Todavia, do falecimento de Nansen (1930) até o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), ainda que os trabalhos sob o âmbito da Liga das Nações sobre a temática tenham continuado , eles não tiveram a mesma efetividade, ou receberam tanto apoio, quanto às ações movidas por Nansen. Dentre eles, importante menção deve ser dada a Convenção relativa ao Estatuto Internacional dos Refugiados, de 1933, que é fruto do reconhecimento da Liga da necessidade de um sistema de proteção aos refugiados de maneira mais permanente. Sua principal contribuição -ademais de garantir direitos como o de educação, emprego e documentos de viagem -, foi a abertura do conceito de refugiados a "assimilados", não se restringindo somente aos refugiados russos e armênios. Igualmente, solidificou-se o princípio da não devolução em seu art. 3º, ao impedir a "não repulsão" dos refugiados que necessitem de proteção internacional. Já na ocorrência dos horrores do Holocausto nazista, a criação do Alto Comissariado para os Refugiados da Alemanha (1936), sobretudo para a proteção dos judeus, também é representativo de que, no contexto da Liga das Nações, já havia grande produção normativa e institucional no sentido de proteção dos refugiados internacionalmente. A Organização Internacional para Refugiados (OIR) Passando mais à frente no tempo, o fracasso da Liga das Nações em assegurar a paz e segurança internacional, a inescrupulosidade do regime nazista e a culminação da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), encurtaram os esforços e o prazo de proteção dos refugiados no âmbito da Liga das Nações. Na incapacidade da Liga de assegurar a paz e segurança internacional, criou-se, em sua substituição, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Afinal, com o fim da Segunda Guerra, a conjuntura em relação aos refugiados era completamente diversa daquela encontrada após o fim da Primeira Guerra. Estima-se que 53.536.000 pessoas foram deslocadas de suas cidades e países durante o período da Segunda Guerra, sendo que a ampla maioria retornou às suas origens após...