O Segundo Problema De Hilbert
2003, Revista brasileira de história da matemática
Abstract
No dia 8 de agosto de 1900, Hilbert apresentou ao 2º Congresso Internacional de Matemáticos, reunido em Paris, uma lista de dez dentre 23 grandes problemas matemáticos ainda sem solução. Hilbert não duvidava que essas soluções existiam, bastando para encontrá-las a dose exata de esforço e engenho. O segundo problema da lista pedia que se demonstrasse a "compatibilidade dos axiomas aritméticos". Assim posto o problema carece da necessária clareza matemática, pois: 1) A que aritmética se referia Hilbert?; 2) Por que seriam necessárias demonstrações de consistência de teorias verdadeiras, como são, supõese, as aritméticas usuais dos números naturais, racionais e reais? (Haveria alguma razão para se duvidar que elas fossem, de fato, verdadeiras?) 3) Que ferramentas matemáticas seriam admissíveis nas demonstrações de consistência; ou seja, essas demonstrações deveriam ser levadas a cabo em que contexto matemático? Eu começo este artigo discutindo essas questões. Ainda que Hilbert tivesse em mente a aritmética dos números reais, nós aqui nos contentaremos em analisar exclusivamente o problema da consistência da aritmética dos inteiros não-negativos, e isso dá conta da primeira questão. Já a segunda requer uma distinção entre teorias propriamente ditas e teorias puramente formais 1 . A aritmética contentual, isto é, a teoria axiomática dos números inteiros não negativos (ou números naturais) é evidentemente uma teoria consistente, simplesmente por ser a teoria de um domínio dado de objetos, os números naturais. A consistência dessa aritmética está, assim, na dependência de uma intuição capaz de nos fornecer os objetos da teoria dos números. Ou, dito de outra forma, a consistência da aritmética contentual é garantida por uma intuição que, pressupõe-se, tem a capacidade de nos oferecer uma teoria verdadeira. Sendo verdadeira, a aritmética contentual é, a fortiori, consistente. A aritmética formal, entretanto, não é uma teoria de nenhum domínio pré-dado de objetos; logo, não é em nenhum sentido próprio nem verdadeira, nem falsa 2 . Cabe-lhe apenas descrever uma estrutura formal, cuja realidade está sub judice. Porisso o problema de sua consistência é tão importante. Trata-se de demonstrar que a estrutura formal que a teoria descreve é uma estrutura possível, ou seja, é a estrutura de um domínio possível de objetos. 1 Frege teve dificuldade em perceber essa distinção. Porisso nunca chegou a entender realmente por que Hilbert insistia na demonstração da consistência da aritmética. 2 Cabe aqui a "definição" de matemática dada por Russell: o discurso em que não sabemos do que falamos, nem se o que falamos é verdadeiro.
References (14)
- termos em que Hilbert o propôs. A criação da metamatemática, os serviços prestados pelo programa de Hilbert à fundamentação matemática e epistemológica das teorias matemáticas, o próprio teorema de Gödel e os métodos extremamente profícuos e originais ali introduzidos são frutos gerados pelo desafio que Hilbert lançou à comunidade matemática. Mas este é, afinal, o papel que cabe aos grandes problemas, matemáticos ou não, o de abrir novos horizontes.
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